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It is not necessary to create a world, but the possibility of a world.
Jean-Luc Godard em Reflexivity in Film and Architecture, 1985.
O conceito de reflexividade, tanto no seu contexto cinematográfico e literário como na sua apropriação pela arquitectura, refere-se ao momento em que subitamente a obra chama a atenção para si mesma enquanto realidade construída e ficcional.
Deste modo, a intervenção no Apartamento na Estrela revela a própria lógica da reabilitação, tornando explícita a ruptura temporal e formal, sem deixar de reconhecer que dessa acção nasce a possibilidade de reconciliação de realidades distintas.
Assumir as questões levantadas pela natureza da reabilitação torna-se ainda mais pertinente se tivermos em conta que o apartamento não só dispunha inicialmente de qualidade arquitectónica como se encontrava em bom estado e pronto para habitar. A intervenção parte, acima de tudo, de uma redefinição programática e reforço das possibilidades de apropriação do espaço pelo cliente. O projecto passa assim por duas abordagens marcadamente distintas.
De carácter mais directo, a recuperação dos elementos e linguagem originais permite potenciar as qualidades construtivas pré-existentes. São mantidos o pavimento de madeira original, a azulejaria da cozinha, as guarnições dos vãos e a decoração das paredes e tectos. O lado sul do apartamento, composto pela cozinha, zonas de serviço e um quarto, mantém a sua configuração original.
A forma como é trabalhada a superfície de azulejos que envolve a cozinha introduz o desejo de diferenciação entre as características primitivas e a nova intervenção. Para além de permitir uma leitura de continuidade na reabilitação, esta abordagem estabelece uma base de contraste para a intervenção que lhe é justaposta.
Essa justaposição é posta em maior evidência no lado norte do apartamento, onde se procedeu a uma total inversão programática. A área privada, inicialmente composta por três quartos, deu lugar a uma única sala de estar. A área social, composta pela antiga sala e escritório, deu origem a dois quartos e um closet. Com a reconfiguração destes espaços surge a questão de como unir aquilo que existira em separado ou dividir o que sempre fora uno.
Na sala, a referência às paredes demolidas permanece como uma coordenada temporal através do emolduramento do seu negativo, definido por um aro de madeira e latão, e da sugestão do seu atravessamento pelo vestígio das portas, definidas pela guarnição e bandeiras. Por sua vez, a parede que agora divide os quartos é um gesto afirmativo, chamando a atenção para si mesma como dispositivo de separação e remetendo a leitura espacial para a sala que lhe deu origem.
O que podia ser facilmente interpretado como uma operação de união e divisão transforma-se num dos principais temas do projecto — o da reversibilidade. O problema espacial dá origem a uma preocupação temporal. Aceita-se que a reabilitação faz parte de um processo contínuo de alterações e de constante revisão da sua própria validade.
E é da relação de diálogo permanente da pré-existência com os novos elementos que resulta a criação de inesperadas possibilidades. Uma espécie de palimpsesto como forma de repensar e desafiar as funções e relações preestabelecidas, dos utilizadores à própria arquitectura.
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It is not necessary to create a world, but the possibility of a world.
Jean-Luc Godard in Reflexivity in Film and Architecture, 1985.
Reflectivity as concept, as much in its use in film or literature as in its appropriation by architecture, refers to that moment when the work suddenly draws focus onto itself as a construct, and as a fictional reality.
Likewise, the intervention done in the Apartment in Estrela reveals its own renovation logic, making the time-based and formal ruptures explicit, nevertheless acknowledging the reconciliation possibilities between the distinct realities which this action eventually spawns.
Acknowledging the questions raised by the nature of renovation itself becomes even more relevant when we take into account that the apartment not only had a good building quality already, but also was in good conditions and ready to be inhabited. The intervention therefore had more to do with a redefinition of its programme, and ultimately the increase of appropriation possibilities of space by the client.
The project thus comprises two different approaches: the first and more direct one deals with recovering the original design elements and language in order to expand its constructive qualities. The wooden floors, kitchen tiles, door trims, and wall and ceiling decorations were left unchanged. The south side of the apartment, comprising the kitchen, service areas and a bedroom, was also left with its original configuration.
The way we worked on the kitchen’s tiled surfaces shows the desire to highlight the differences between the original traits and the intervention. Besides from allowing a sense of continuity in the renovation process, it also provides contrast with the juxtaposed new elements.
This juxtaposition is made more evident on the north side of the apartment, where we inverted the totality of the programme. The private areas, initially comprising three bedrooms, gave place to a single living room. The social area, comprising the former living-room and a study, became two bedrooms and a walk-in closet. This reconfiguration deals with how to unite what had so far been separate, and divide what had so far been whole.
In the living room, the reference to the demolished walls stands, through its framed negative, as a time-based coordinate, is now defined by a rim of wood and brass. There is also a hint of wall-crossing, left by mere traces of doors, their remaining trims and headers. In its turn, the wall now dividing the bedrooms is a rather affirmative feature, drawing attention back to itself as a separation apparatus, and taking spatial reading back to the original living room.
What could be easily understood as an act of uniting and separating becomes one of the project’s main themes – reversibility. The space issue becomes a time-related concern. Now we have come to accept that renovation is part of an ongoing process of change and constant revising of its own validity.
It is, then, from the constant dialogue between the previous elements and the new ones, that the creation of unexpected possibilities emerges. A kind of palimpsest as a way of rethinking and challenging the pre-established functions and relationships, from dwellers to architecture itself.